domingo, 19 de fevereiro de 2012

Carnaval

O Carnaval ultimamente vem sendo associado à overdose de axé e congêneres, executados até a exaustão. Ou então é associado a infindáveis desfiles com sambas de enredo de estilo pobre, metáforas frouxas, clichês intermináveis num campeonato em que prevalece a indigência intelectual. É uma festa tão apreciada que acaba sendo imitada nas micaretas que se espalharam no decorrer do ano. Tão valorizada por aqui que nos dá o apelido de a Terra do Carnaval, onde, reza a tradição, tudo só começa a funcionar seriamente após a ressaca dessa festa.
Para se sair desse profundo mar da intelectualidade rasa, vale a pena relembrar alguns aspectos ligados à origem desse evento. Há várias teorias sobre sua origem, todas ligadas à ideia de que era um período de exceção, de intervalo de uma realidade que se lhe opunha. Se o cotidiano era de trabalho, o Carnaval era o momento em que se podia entregar à diversão. Se o cotidiano era de pobreza alimentar, o Carnaval era o momento em que se podia entregar à comida e bebida. Se o cotidiano era de respeito aos ideais da espiritualidade, o Carnaval era o momento em que se podia entregar aos prazeres da carne. Se o cotidiano era de apego rígido às hierarquias sociais, o Carnaval era o momento em que se podia desrespeitá-las, tendo até mesmo uma figura pândega que ridiculamente imitava (momo era o nome desse tipo de encenação) o rei – daí a tradição do Rei Momo. Em resumo, não é demais repetir, essa festa era uma exceção, uma quebra do cotidiano e não um acontecimento a ser almejado para todo o sempre.
É preciso, entretanto, que se deixe bem claro que não se está renegando o riquíssimo processo de carnavalização (celebrado por intelectuais que vão de Oswald de Andrade a Mikhail Bakhtin), segundo o qual há em certos povos uma busca intensa (consciente ou não) de inversão de valores. Essa técnica cultural nada mais é do que um saudável respiro que nos permite aguentar as dificuldades de nossa existência. Está-se, na verdade, reclamando do que hoje se fez do Carnaval: uma entrega desenfreada ao hedonismo fútil, incentivado até à estafa pela mídia, que faz com que se patine ou até mesmo se atole na lama cultural.
E é por causa dessa necessidade natural de distensão, típica do Carnaval, que O Magriço Cibernético apresenta um respiro a esse evento, sem, de certa forma, sair dele. Salutar paradoxo. Assim, o que se está apresentando aqui é um trecho de As Quatro Estações (1723), de Antonio Vivaldi. Trata-se de uma obra que foi planejada como se fosse multimídia: ela era tocada acompanhada da apresentação de quadros e da recitação de sonetos.
No trecho acima, ouve-se “O Inverno”, concerto cuja sonoridade se esforça por sugerir essa estação. No primeiro movimento (“Allegro non molto”), a animação que suas notas musicais transmitem se refere à guerra dos ventos frios que nos fazem bater os dentes. Já no segundo movimento (“Largo”), sugere-se a alegria e a tranquilidade da situação confortável de se estar diante da lareira, livre da chuva gelada e inclemente do mundo exterior, representada pelos violinos que são dedilhados – processo conhecido como pizzicato. Por fim, o terceiro movimento (“Allegro non molto”) é bastante humorístico. Sugere a lentidão cuidadosa de alguém que anda preocupado em não escorregar no chão afetado pela baixa temperatura. Esforço inútil, pois a pessoa acaba caindo. Então ela se levanta e passa a andar bem mais rápido, imaginando que assim não cairá mais.
Mas o que mais chama a atenção nesse vídeo gravado em 1988 em Veneza é que no começo seu diretor, Anton van Munster, faz uma referência aos célebres carnavais de Veneza e seus bailes de máscara. Nessa festividade, seus integrantes tinham noção, ao que parece, de que não estavam em suas identidades rotineiras. Talvez por isso usassem máscaras – e aqui se é agraciado com a exibição de vários tipos delas, cada uma mais elaborada e graciosa que a outra.
O Magriço Cibernético espera com essa pequena peça barroca, interpretada pelo grupo I Musici, dar uma experiência diferente do que a que está nesse exato momento sufocando os seus leitores..

3 comentários:

  1. Concordo. Ao meu ver, o carnaval se transformou num festival pornográfico gratuito, onde todos (ou quase todos) os meios de comunicação em massa se voltam para esse evento.
    Isso me faz pensar na hipocrisia que existe no Brasil. Por exemplo, soltar um palavrão em algum programa de TV é proibido; e quando sai, colocam o famoso "Piiii". Agora, ver um desfile de carnaval, com mulheres praticamente nuas, não parece ser impróprio.

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  2. Minha queixa nem é tão grande quanto à nudez. A minha crítca, Rodrigo, é por causa da pasteurização massificadora que fizeram dessa festa.

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  3. Amigo,


    sugiro uma volta, em dia de carnaval, pelo RJ. Ainda há muitas opções de carnaval de rua.

    Em SP também há resistentes da festa popular, como o Bloco dos Esfarrapados.

    Creio que há uma grande diferença entre o carnaval mostrado e o vivido.

    Precisamos urgentemente saber quais são.

    Abraços.


    Opalpiteiro

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