domingo, 3 de junho de 2012

Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett

O vídeo acima apresenta a música Vltava (1874), trecho da obra Má Vlast, do tcheco Bedřich Smetana. Trata-se de um poema sinfônico que narra o que se encontra no curso do rio Moldava (Vltava, na língua da República Tcheca), o qual nasce das águas de dois cursos calmos, o “frio” e o “quente”, que se juntam, atravessam bosques e prados, encontram um casamento campestre, alargam-se, passam por Praga, a capital desse país, até que somem ao se integrar ao rio Elba. O interessante é que durante a execução do vídeo podem ser vistas diversas imagens daquela nação.
Fica claro, portanto, que se está diante de uma obra nacionalista e a tradução do nome dela (“má vlast” quer dizer “minha terra”) só vem reforçar esse ponto. E na hora surge à mente o “Canção do Exílio” (1843), de Gonçalves Dias, que se utiliza da mesma expressão:
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá,
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.
Nota-se, então, que se vivia uma onda nacionalista, que deve ter atingido também Almeida Garrett, pois o mesmo sintagma se encontra no título de sua obra, Viagens na Minha Terra (1846), leitura obrigatória para os vestibulares da FUVEST e UNICAMP 2013. Entretanto, há um ponto que torna o autor português superior ao tcheco e ao brasileiro na confissão de seu patriotismo.
Smetana e Dias declaram uma paixão por seus países que se concentra na valorização da natureza. Garrett ama alguns pedaços de sua pátria – mas não todos. Tem uma visão crítica – talvez saudosista – ao apontar defeitos em alguns momentos da viagem que faz de Lisboa a Santarém. Entretanto, a superioridade do português não está em apontar falhas, mas em apresentar uma visão crítica, o que o distingue da avalanche nacionalista que varria o mundo romântico. Parece que o autor, colhido por essa corrente, não apenas se entregou a ela, mas passou a observar atentamente o que o carregava. Ou pelo menos passou a sentir. Explica-se.
Enquanto faz seu passeio, Garrett, como se sabe, vai tecendo comentários, muitos deles digressivos, que revelam seu vasto repertório cultural. Tornara-se moda esse tipo de narrativa em que o autor não parece seguir um rumo fixo, linear. Encontramo-la no Viagem ao Redor do Meu Quarto (1872), do francês Xavier de Maistre, assim como no Viagem Sentimental (1768), do inglês Lawrence Sterne. Mais tarde aparecerá no Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis. Mas para alguém incapaz de acompanhar a intensidade de suas referências histórico-literárias, esse fluxo de conteúdo pode provocar afogamento. A salvação parece ser nadar para a margem e fugir da correnteza. Em outras palavras – abandonar a leitura. Entretanto, como já provara Sete-de-Ouros em “O Burrinho Pedrês”, conto de Guimarães Rosa que abre Sagarana (1946), o mais sábio pode ser entregar-se à corrente. Fazer o mesmo que o autor, o que lhe possibilitou enxergar um problema que não se restringiu ao âmbito de sua pátria.
A partir do capítulo XI, quando o índice de digressões diminui, Viagens na Minha Terra passa a narrar a história de Carlos e Joaninha, primos que se amam. Ambos são netos de D. Francisca, que carrega uma misteriosa dor tão grande que a fez chorar tanto a ponto de ficar cega. Há ainda a presença aziaga de um frade, D. Dinis de Ataíde, exemplo do mais rígido e coerente apego à religiosidade cristã. Como pano de fundo, a guerra civil em que Portugal estava mergulhado: realistas (aliados de D. Miguel) contra constitucionalistas (aliados e D. Pedro IV, o nosso D. Pedro I). Os temas épico e lírico, entretanto, parecem mais ligados entre si do que parece.
Carlos, conquistado na universidade pelas doutrinas novas, acaba se desentendendo com D. Dinis, religioso que inexplicavelmente exercia forte influência sobre D. Francisca e seu neto.  Exila-se na Inglaterra, onde se apaixona sucessivamente por três irmãs britânicas. A última, a que lhe sobrou, é Georgina. Deflagra-se a guerra civil em Portugal e o jovem se alista nas tropas de D. Pedro, pois este defende a modernidade que o protagonista tão bem conheceu em seus estudos e na terra estrangeira que o acolhera.
O combate enfim concentra-se em Santarém, o que faz com que a personagem principal volte às suas origens. É quando reencontra a paixão antiga, Joaninha. É quando também se defronta com o soturno D. Dinis. O clima de tragédia só tende a aumentar. Mas mais não se vai falar, para não estragar o prazer da leitura da obra. A preocupação deste post é outra: guiar a compreensão do texto.
O grande problema de Carlos, que se vê indeciso entre amar Joaninha, sua companheira de infância, e Georgina, que conhecera em terras ditas mais civilizadas, parece representar o drama de Garrett e do próprio Portugal: a indefinição entre tradição e modernidade. É um tema que de uma forma ou de outra está em outras obras da lista de livros da FUVEST-UNICAMP. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas está na apresentação de uma elite brasileira que abraça o moderno discurso liberal, mas que ainda se mostra escravista. Em Til (1872) estará na dura decisão de Miguel de abandonar tradições atávicas como o cigarro de palha e o costume de falar mecê para evoluir e unir-se a Linda, seu grande amor, e abandonar a divina Berta, superior a qualquer outra personagem. Em A Cidade e as Serras (1901) estará no embate entre Paris, capital da modernidade da civilização, e Tormes, recanto aprazível da tradição portuguesa. Enfim, essa dispersão só põe em foco o fato de que esse conflito entre passado e futuro não foi resolvido.
Esse dilema se torna mais crítico quando se percebe que o impulso nacionalista de Viagens na Minha Terra segue uma moda que está em outros países. Monta-se então um paradoxo: é-se nacionalista porque outros países também se mostraram; faz-se uma arte patriótica que segue o padrão aberto por outras obras de outros países. Então, onde está o nacionalismo? E essa questão ainda é atual. Georgina está em terras portuguesas por razões humanitárias, cuidando dos feridos que a guerra, alimentada por ideais de sua Inglaterra, havia provocado. Lembra a dúvida: a ajuda humanitária dos países “evoluídos” é socorro ou intromissão? Não é o que estamos vendo no Oriente Médio, assolado há pouco tempo pela Primavera Árabe? O que é a ajuda dos EUA ao Iraque e Afeganistão?
Enfim, Garrett parece ciente de que esse choque nos empurra para uma situação periclitante e que está acima do mero embate entre tradição e modernidade. No fundo, como bem profetizou D. Dinis, nenhum dos dois lados é vencedor, pois nenhum está preocupado com grandes valores humanos. Quando se vê que Carlos, tanto tempo indeciso entre Joaninha (tradição lusitana) e Georgina (modernidade importada dos países “desenvolvidos”), acaba caindo em um suicídio moral, transformando-se em um barão, enxergamos o tipo de sociedade que acabou sendo construída para nós. Vivemos em um mundo em que os ideais nobres foram solapados e substituídos por um prosaísmo vulgar. Não aquele tão bem cantado por modernistas como Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Clarice Lispector, entre outros. Mas o que nos faz aceitar a corrupção de valores éticos, a dilapidação da decência. Aquele que nos faz aceitar que a integridade seja sepultada, que líderes políticos mintam e ainda assim sejam reeleitos. Porque o que mais importa é o prosaísmo vulgar, a economia. Olhemos nossa História recente. Grandes líderes caíram não por causa dos valores humanos, mas porque não souberam manter a economia firme: Bush, Blair, Berlusconi, Mubarak. Não é mais o coração que nos governa, mas o bolso. Os barões assinalados, nobres, de Camões não valem mais. Agora os barões endinheirados de Garrett é que nos comandam.

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